Quando o machismo vira manchete
Todo assassinato de mulher que vira estatística foi antes insulto. A palavra muitas vezes ensina o gatilho.

Puxa uma cadeira. O café chegou e a dor também. A cada notícia de mulher arrastada por carro, esfaqueada, baleada ou morta pelo homem que dizia amá-la, a sensação é de que estamos presos num looping de brutalidade e descaso. O noticiário relata mais um caso, o horror se repete, a normalização avança.
Nos últimos meses, os registros de violência extrema contra mulheres só aumentaram. São relatos brutais, muitas vezes com agressor conhecido, com histórico de ameaças ou de misoginia explícita. E quando o agressor é identificado, não raramente encontra-se alinhado ao discurso da força bruta, da virilidade como valor e da política que reduz mulheres a estorvo, adorno ou propriedade.
Esse padrão não nasce do acaso. Ele é consequência direta de anos de insultos normalizados. Jair Bolsonaro gastou boa parte da vida pública humilhando mulheres diante das câmeras. Disse que não estupraria uma deputada porque ela não merecia. Chamou uma jornalista de vagabunda. Disse que sua própria filha foi o resultado de uma fraquejada. Ridicularizou vítimas. Transformou violência verbal em espetáculo. E milhões bateram palma. A pedagogia do ódio sempre encontra aluno disposto.
A realidade devolve esse veneno. Um exemplo recente é o do ex-prefeito Naçoitan Leite, condenado pelo Supremo Tribunal Federal por incitar a eliminação de Moraes e Lula. O mesmo homem foi denunciado por tentativa de feminicídio depois de invadir a casa da ex-mulher e disparar quinze vezes contra a porta atrás da qual ela se escondia. Um político que prega eliminação na praça pública e tenta matar uma mulher na esfera privada não é coincidência, é coerência. A cadeia lógica entre discurso de violência e prática de violência é transparente. E conhecida.
Quando palavras como incomível, vagabunda ou fraquejada são repetidas como graça, o limite entre a fala e o tiro se dissolve. A humilhação pública vira ensaio. A agressão doméstica vira método. A imprensa, muitas vezes, descreve o corpo caído, mas quase nunca expõe a cultura que o derrubou. Publica caso isolado. Evita a palavra feminicídio. Finge surpresa enquanto empurra o país de volta para o mesmo buraco moral.
A banalização da ofensa deixa a porta aberta para a bala. O desprezo vira política pública. A misoginia se disfarça de opinião. A cada mulher morta, a sociedade inteira se revela. A cada agressor que ecoa o discurso de ódio com naturalidade, o país mostra o quanto absorveu e aceitou essa lógica de dominação.
O café esfria, mas a sensação de náusea não passa. A violência contra a mulher não é acidente, não é exceção, não é opinião protegida. É sistema. É doutrina. É consequência direta de anos de aplausos à brutalidade.
Enquanto a humilhação for permitida, a bala continuará possível.
Receba cafés fresquinhos de informação — notícias leves, rápidas e sempre quentinhas.
Entrar no grupo






