Café, fé e razão

Obrigado é pau-de-arrasto

Entre o menino crente e o homem agnóstico, um olhar sobre o país que torceu a fé até sangrar

Chris Schlögl 06 de novembro de 2025

Foto: Gerada por Inteligência Artifical para ilustrar a matéria
Foto: Gerada por Inteligência Artifical para ilustrar a matéria

Hoje eu te convido pra um café. Sem pauta, sem filtro, como quem senta pra conversar e acaba abrindo a alma entre um gole e outro. Costumo evitar analisar o todo pelas minhas experiências, porque sei o risco do viés de confirmação, essa armadilha em que a gente usa o próprio espelho pra enxergar o mundo. Mas também sei que há momentos em que a experiência pessoal é o único caminho possível pra tocar a realidade.

Minha mãe, Joana D’arc, diz até hoje uma frase que carrego desde menino:

“Obrigado é pau-de-arrasto.”

Aquilo que passa e deixa rastro, que marca o chão. E isso sempre me acompanhou: eu estudava em escola católica chamada São Francisco e depois fui para a escola pública até o fim da minha formação. Foi nesse caminhar que comecei a entender o peso das diferenças. Desde cedo, minha mãe me levava à Igreja Batista Renovada, e eu, com cinco anos, já conhecia a sensação de ser o diferente.

Vieram os apelidos, o “crente do c… quente”, e as professoras que queriam que eu rezasse em sala, e eu me recusava. Não por rebeldia, mas por convicção. Colegas me perguntavam se eu não tinha televisão por causa da religião, e eu dizia que não, naquela sinceridade infantil, porque não tínhamos dinheiro mesmo. Eu não chorava, mas me fechava. Fiz amizade com os livros e com o silêncio das bibliotecas. Li histórias de meninos russos que escondiam bíblias, tramas em que a fé era resistência, no que futuramente fui entender como material panfletário e de doutrinação demonizando Rússia, China e qualquer pensamento divergente. Mas continuei. E, graças ao meu pai agnóstico, li tudo o que apareceu também.

Na adolescência, entrei num movimento de inclusão com música, dança e arte, pra mostrar que os crentes também eram de carne, som e riso. Que não vivíamos num planeta paralelo. Até aí, ainda me considerava cristão. A ideia era incluir. Até que começaram a surgir as fake news, os delírios de que Xuxa servia ao diabo e que a Disney escondia mensagens satânicas. O discurso do amor virou mercado, a fé virou moeda.

Eu me afastei. Vi a Bíblia ser torcida até perder o sentido. Vi os mesmos que pregavam amor se tornarem arautos do ódio. E quando o bolsonarismo chegou, lavou a mente de quase todos. Até os que me ensinaram sobre o perdão. Até minha mãe, Joana D’arc, minha heroína cristã, que hoje repete as mentiras de um falso messias. Ainda assim, é amada por esse seu filho que aprendeu a pensar, que ainda acredita no gesto humano, mas não no divino.

Talvez por isso eu me considere um agnóstico que reconhece a beleza de alguns gestos cristãos, mas não se curva a dogmas. Não creio em salvação, creio em decência. Acredito na força ética que resta quando o misticismo se cala. Não preciso de fé para agir com empatia, nem de mandamentos para entender o que é justo. Reconheço e elogio quem faz da fé uma ação em favor dos pobres, como o padre Júlio Lancellotti, cuja vida e trabalho são exemplo concreto de prática solidária e coragem moral.

Vejo que, paradoxalmente, é na esquerda que sobrevivem os valores humanos que a igreja abandonou. Justiça, partilha, empatia. Só que a maioria dos que se dizem cristãos não enxergam isso. Não importa a classe social, seja a diarista, o contador ou a advogada, todos presos na ilusão de um bem e mal fabricado por quem lucra com o medo.

Vivemos hoje um mundo paralelo em que a razão parece morrer em praça pública. Enquanto os falsos neutros fingem equilíbrio, dizendo que há dois lados e fortalecendo a intolerância, eu repito: quando um mata e o outro morre, não há polarização, há massacre.

E o massacre da razão é o mais silencioso de todos.

Quem serviu esse café?

Chris Schlögl
Chris Schlögl

É jornalista e criador do Café, Amigos e Sinceridades, um espaço onde opinião e café se misturam sem pressa. Prefere o amargor da verdade ao açúcar da conveniência. Escreve para provocar conversa, não consenso. Acredita que jornalismo é janela, não vitrine.

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